quinta-feira, 7 de agosto de 2008

O dia em que não existi mais



Acordei às sete e doze. Atrasado pro trabalho, é lógico. A não ser que eu consiga fazer o trajeto Itaipu x Penha em menos de sessenta minutos, o que sempre é muito improvável diante das baldeações obrigatórias: descer do primeiro ônibus para pegar a barca e em seguida o segundo ônibus, no centro do Rio, na Primeiro de Março. Só que hoje, exatamente hoje, aconteceu algo muito estranho. Começou quando saí da estação das barcas, na Praça Quinze. Ignorando o fato de estar completamente imerso nessa bosta que é o atraso, parei diante do painel de uma banca dessas que vendem até desde a Folha de São Paulo a uns livrinhos que não são apenas “Sabrina”, enfim, daquelas bem grandes, para ler as manchetes do dia. Estava lendo sobre meu Botafogo querido e suas glórias recentes, quando um almofadinha desses de terno, maleta e testa suada veio como um bonde e me jogou longe, estirado junto aos pombos azuis e as pedras portuguesas da praça. Levantei já pronto pra tirar alguma satisfação com o sujeito, que seguiu adiante sem hesitação alguma, nem sequer olhou pra trás. Puto da vida que eu estava, alcancei-o e tentei empurrá-lo, de lado. Qual não foi minha surpresa ao notar que meus braços pareciam de papel. O terno do cara nem amassou, nenhuma fibra do tecido se mexeu. O sujeito, menos ainda. Menos puto, mas não menos preocupado, dei um safanão no painel com os jornais diversos da banca. Um sopro de um asmático em plena crise teria surtido efeito muito melhor. Intactos. Painel e jornais. Segui na direção do ponto de ônibus, atravessando toda a praça, passando pelo monumento do D. João VI e seu cavalo sem bolas, pela entrada da Bolsa de Valores, pelos taxistas entediados falando sacanagens, pelo Arco do Telles, por mais uma banca, olhei a Igreja de São Sebastião, dobrei, agora estava na Primeiro de Março, vi os ambulantes que vendem biscoitos e doces, os sobradinhos, o Mercado à Jato e parei, bem em frente a ele. Reconheci a moça de nariz fino no ponto, era a Srta Bico Fino, ela faz parte do meu cotidiano, oras. Virou uma personagem do folhetim diário imutável que protagonizo. A Srta Bico Fino entrou, deixei-a passar, que cavalheiro eu sou, e subi os degraus do ônibus, escapando por pouco de ficar preso na porta, que se fechou quase em cima de mim. Estendi o riocard no leitor e nada aconteceu. O trocador também não olhou para a minha cara de babaca de nove e quinze da manhã. Incomodado, sentei nos bancos da parte anterior à roleta. Assisti aos guindastes, armazéns, mendigos e às pessoas desesperadas e amontoadas nas portas dos ônibus mal-humorados em frente à rodoviária Novo Rio. Ninguém sentaria do meu lado, ou sentaria em cima de mim, julgando estar o assento vazio, pensei. Mas não entrou mais ninguém depois do ponto que fica atrás do antigo prédio do Jornal do Brasil. E na avenida homônima ao jornal, o ônibus vai pela via seletiva. Desfilaram pelo trajeto todas aquelas pequenas cidades onde as leis são outras, as casas todas amontoadas e sem pintura, mas sempre com um sorriso na fachada, seja porque é uma bela manhã de sol, seja porque tudo está em paz ou simplesmente porque sorrir de manhã é bacana.
Até eu, inexistente, sorrio, ao lembrar que nasci às margens dessa avenida vinte e cinco anos atrás. Lembrei disso quando passei em frente ao Hospital Geral de Bonsucesso. Enquanto seguia com meu “In my life” particular mesclado ao meu “Nowhere Man” existencial, o ônibus deixou a seletiva e subiu o viaduto que desemboca na Lobo Júnior, pulmão da Penha. O coração fica do outro lado, após outro viaduto. Aproveitando que alguém subiria no ponto que desço, me desembestei pela porta da frente mesmo. Sem oposição alguma do motorista. Menos ainda do passageiro que subia. Atravessei a rua e já estava na porta do trabalho. Não precisei tocar o interfone porque o auxiliar de serviços gerais limpava a entrada, de porta aberta. O porteiro estava distraído, ou consciente de minha inexistência. Subi os quatro lances de escada daquele prédio abafado, o ar úmido do corredor lembrava um calabouço. Isto é, não sei, nunca estive em um calabouço. Abri a porta e ninguém levantou a cabeça. Eu realmente não existia mais. Devo ter morrido no trajeto da barca. Ou descendo do ônibus ainda em Niterói. Nunca quis morrer em Niterói. Diabo, nunca quis morrer. Ah, já, mas quem nunca quis? Sentei na minha cadeira azul e o chefe do setor despeja na minha mesa, sem olhar pra minha cara de babaca das dez horas da manhã, uma folha com as informações sobre a fibra ótica TR-035. É o serviço de hoje. Eta negócio esquisito esse de não existir.

4 comentários:

Vivien Lee Mamedio disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vivien Lee Mamedio disse...

Sinceramente tenho uma grande dúvida: Seria pior não ser notada na multidão? ou simplesmente não conseguir respirar por ser sufocada de olhares e espectativas? Sinceramente ainda não decidi. Mas tenho a certeza de que revivi cada um dos passos e lugares que você descreveu. Obrigada pela viagem.

César disse...

Fala Marco!!

Isso me lembra o ano passado, quando eu trabalhava no centro do Rio durante a semana e em Madureira aos sábados... intermináveis correrias pra pegar a barca, o metrô, o trem da Central, o setecentos-e-setenta... tinha vezes que, pros motoristas, eu parecia não existir mesmo!! rsrs

Po, tu escreve bem pacas! Vou voltar aqui outras vezes, posso? Ah, e estou reativando meu blog bilíngüe: eletroglifos.blogspot.com. Abraço!

Alessandra Castro disse...

Nessas horas a gente pode pensar assim ó: "Será que uso minha invisibilidade para o bem? Ou para o mal?"

Hummmmmm... :D