domingo, 18 de maio de 2008

O Envelopador

Uma hora e quinze pra ir embora. Eu fico sempre pensando na vida além daqui. Ou de qualquer outro lugar que me entediasse tanto quanto. Embora eu seja devidamente remunerado pelo tempo que disponho à eles. Mas acho que sempre foi assim. Sempre aqui, mas com a cabeça no dia transcorrendo inteirinho lá fora, em todo aquele sol que torrou a areia da praia, aquele mesmo sol amarelo e febril que invadiu meu quarto vazio depois da hora do almoço, no livro interrompido pela soneca após a refeição, cujo prato, depois de vazio e preguiçoso, se recusara a caminhar para a pia. Além da tarde dourada ao acordar, com aquele tributo ao Bob Dylan girando no som, volume 78, graves reforçados, o slide atacando a si e a mi daquele maravilhoso Folk e a voz caipira e bem impostada do rapaz (?) cujo segundo nome é Aaron, cantando "... Yes and only if my own true love was waiting...", tornariam a tarde completamente ímpar, é claro, e fundamentalmente, se eu ESTIVESSE lá. Isso é desolador, não? Penso nos empregos que tive ao longo deste quarto de século. Um dos trabalhos mais imbecis que tive, descolei no desajeito total dos meus dezesseis anos. Consistia em envelopar papéis em envelopes plásticos transparentes. No primeiro envelopamento você perde cerca de dois a três minutos querendo abrir o envelope com os dedos, depois segue tentando fazer com que o papel (ou papéis) entre (m) esticadinho (s) no envelope. Aí alguém mais caleijado está te observando e diz: "Não, não faça assim que é perda de tempo! Tá vendo aquelas pilhas de cartas? (sim, acho que eram cartas, algo de um banco, informes, provavelmente) Elas não vão diminuir se todo mundo fizer assim igual à você!". E aí você aprende que deve apenas friccionar de leve a boca do envelope e depois soprar ali dentro; em seguida, tentar fazer um cilindro com a carta e acomodar no envelope, até que ambos - carta e plástico - se acomodem naturalmente. E isso em trinta segundos, se você estiver no auge da prática. O lugar era um galpão sem janelas, teto bem alto, inúmeras caixas com os plásticos e pilhas inacabáveis de cartas ou extratos ou o diabo, espalhadas por todos os cantos. E é um belo exercício de resistência - ou de rendição - à monotonia fazer isso por oito horas diárias. Pelo menos a tonteira leve provocada pelo assopra-assopra compensava em diversão o que sobrava em tédio. Então era mais divertido observar - sem exceder seu "tempo-base" de envelopamento, é claro - se havia algum nome curioso ou que me fizesse rir, como MARCEANO fez. O extrato do Sr. Marceano foi um achado. Hahahahaha. Fiquei tão impressionado com a coragem dos pais do Sr. Marceano que li mais de duas vezes só pra comprovar a minha estupefação. Azar da pilha, dos plásticos, do sr. Correios, quem sabe. A maioria ali no galpão era composta por funcionários dos Correios, que usavam como uniforme uma blusa pólo azul com a logomarca bordada do lado esquerdo do peito, onde bate o coração, onde se guarda os amigos, que dizia a canção que na América não ouvi, porque ainda não estive lá. Como os funcionários não davam muita trela aos funcionários temporários como eu - reconhecidos, além da inaptidão primária, pela ausência de uniforme - eu simplesmente PRECISAVA que cada uma daquelas pessoas tivesse nome. Ao menos na minha cabeça deveriam tê-lo. Bob Rino era um deles. Um camarada muito grande, quando estava de bom humor tinha a cara mais feia e carrancuda do galpão. Às vezes ele me encarava como se dissesse: "Tá olhando o quê, babaca? Envelopa estas porcarias direito!". Eu baixava os olhos e voltava pros envelopes, com medo que ele me escutasse pensar, o filho da mãe. Havia uma garota por quem me apaixonei instantaneamente, eu reconhecia nela uma dançarina de um popular programa de televisão e isso me animava deveras a amadurecer a idéia de um possível contato, algum dia. Mas isso não aconteceu. Tinha o Seu Bituca também. Um senhor, um coroa com os seus cinqüenta e tantos anos, que parava de cinco em cinco minutos pra devorar um cigarro. Sim, acredito que ele os comia com sofreguidão, com lágrimas nos olhos de tanto prazer, nham nham nham, devoção, nham, nham , limpava os cantos da boca e voltava ao seu banquinho e aos seus envelopes. Ele parecia qualquer coisa defumada, tinha cheiro de fumaça a qualquer hora do expediente, acho que conseguiu isso com muita perseverança e muitos cigarros, sem dúvida. Acho que o Seu Bituca só largava os cigarros pra mastigar comida mesmo. Eis um tema agradável: a hora do almoço. Mas não era um alívio, como deveria ser. Ora, eu estava trabalhando ali justamente porque era duro como o rock (trocadilho que não funciona em português), e o pagamento sairia apenas depois do término das atividades, logicamente. Então, tão duro quanto eu havia chegado, ainda tão duro eu estava na hora do almoço. Nem tanto assim também. Com uma prata e algumas moedas que quase faziam outra prata, era só achar uma daquelas casas de doces onde os revendedores costumam comprar seus produtos. Não seria difícil achar uma dessas na parte mais feia do Centro da Cidade. Ha! Apreciador que eu era (?) destas iguarias que são os biscoitos formato sanduíche, com os mais variados tipos de recheio – nem tão variados assim, talvez – , resolvi desta vez deixar de lado as marcas mais consagradas e investir meu modesto capital no produto de uma companhia que fosse emergente, que estivesse buscando seu lugar ao sol com competência, bons ingredientes e simplicidade; pra que tirar das prateleiras os pacotes mais sedutores, que te incitavam e prometiam rios de leite e baldes de morango, pedaços surreais de chocolate, logomarcas cuidadosamente desenhadas durante a hora extra de algum almofadinha em seu escritório, com sua bela mesa, seus esboços, suas canetas e réguas que valiam sei lá quantas diárias de um envelopador. E provavelmente, naquele exato instante, almoçava do outro lado do mesmo Centro da Cidade em que eu estava agora, em algum restaurante com ar-condicionado e bastante alcatra mal passada com alho em seu prato. Tomado por estes pensamentos, peguei um pacote de péssimas cores, péssimas ilustrações e ótimo preço de mercado. Aquilo sim era um investimento. Eu me tornava, assim, um mecenas de uma entre as várias das pequenas empresas alimentícias do nosso país. O sucesso do produto seria instantâneo, alavancado pela corrente de boas impressões e pelo conseqüente boca-a-boca, venderia mais e mais, aumentaria a procura, as fábricas da então pequena companhia contratariam mais, lucrariam mais, virariam referência na fabricação e comercialização de biscoitos e o almofadinha da outra empresa praguejaria e desejaria ter nascido de novo, com a cabeça enterrada nas mãos, aos prantos, em um banco de madeira na Travessa do Ouvidor. Ainda maravilhado com minha escolha, percebi que em minha carteira havia orçamento disponível para molhar a garganta, e levei um desses copos de guaraná natural que são, na verdade, estas mesmas coisas em copos de embalagens diferentes: guaraná natural diluído um pouco mais diluído até ficar na cor certa, aquela bela cor de scotch. Minha empolgação com o gasto bem planejado da grana ruiu abruptamente e deu lugar à uma insatisfação crescente, acompanhada da minha cara de idiota nessas situações. Eu estava mastigando uma bela argamassa de farinha de trigo com alguma substância prima distante de bem longe daquilo que até então eu conhecera como chocolate. Aquele biscoito que comprei era um veneno. O santo guaraná agiu como um amoníaco num banheiro de terminal de ônibus. Mas comi todo o pacote e senti a barriga bem sedimentada, na textura certa,com o auxílio da bebida amazônica ingerida simultaneamente. Imaginei que só sentiria fome dali a muitas, muitas horas. Talvez só no dia seguinte. Uma leve preocupação sobre se aquele meu improvisado almoço daria trabalho na hora de abandonar meu corpo surgiu em minha cabeça, mas foi embora com a mesma rapidez com que veio. Vadiei caminhando pelo Centro até que desse a hora de voltar. E segui envelopando até que a pilha acabasse por completo e eu recebesse as diárias de serviço. E por aqui, olho no relógio da barra de propriedades e vejo que são quatro e cinqüenta e oito da tarde. Hora de cair fora. A tarde e o sol praticamente se mandaram, junto com o Bob Dylan, o quarto, o livro e a soneca. Mais um dia igual à ontem, que foi igual à anteontem, e ao primeiro dia aqui. Mais duas linhas, dois minutos e vou-me embora. Entediado. Só que sem envelopes desta vez.

2 comentários:

Alessandra Castro disse...

Belo texto, bem descritivo e que faz o leitor viajar mesmo em suas idéias. O cotidiano nunca parece tão interessante quanto o lido aki. ;)

Anônimo disse...

minha imaginação voa longe...
espero que o próximo texto apareça por aqui rapidamente!

beijo, marco!