domingo, 9 de março de 2008

Armazém Nove

- Alô?!

- Companhia de Água e Esgoto do Estado, bom dia.
- Alguém aí para ouvir uma reclamação séria?
- Sua ligação será transferida para o setor responsável, senhor. Aguarde na linha, por gentileza.
- Ah, merda... - disse, afastando o telefone do rosto
- Um instante...
- ♪ ♪ ...
- Companhia de Água e Esgoto do Estado, pois não, em que posso ajudá-lo?
- Então, podemos começar?
- Me informe seu nome, senhor, e a localidade de onde está falando, juntamente deste número na sua conta de água que aparece logo abaixo do seu logradouro.
- Logradouro? Olha, meu nome é Coelho, pode por assim aí, Tomás Coelho.
- ...
- ....
- Senhor, preciso dos seus dados e o número, por favor...
- Ah, rapaz, vamos direto ao assunto, porque bafo de boca não cozinha ovo... tenho dúvidas quanto ao endereço também.
- Como assim, senhor? O senhor pode ser mais claro? - Interpelou o afobado atendente do setor de qualidade de serviços prestados.
- É o seguinte, rapaz: eu moro na cidade do Rio de Janeiro mas não possuao residência fixa. Pra começo de conversa nem residência possuo. Aliás, possuo muito pouca coisa além do meu próprio corpo. Eu moro atualmente no Armazém Nove, aqui no Cais do Porto, e tem um grande vazamento de água bem em frente à minha cama. Você sabe, a rua aqui é bastante movimentada, os caras dos ônibus passam aqui à toda nas primeiras horas da manhã... A água se acumula durante a madrugada e quando o primeiro motorista espírito de porco passa aqui, ele faz questão de passar sobre a lagoa formada aqui. Estou falando de ser acordado antes das seis da manhã, meu bom rapaz! Com um banho, na própria cama! Você não gostaria de ser acordado dessa maneira, gostaria? Me diga...
- Senhor, isso é...
- Fora que a água é imunda. Não é por mal, você sabe. Eu seria capaz de tomar banho nela, sabe? Mas antes eu teria de ser capaz de tomar banho, somente. Você não dá valor à tomar banho, até que você não tem onde tomá-lo.
- Mas... - Balbuciou o atordoado atendente do setor de qualidade de serviços prestados.
- E entenda que com esse vazamento, cria-se uma grande dificuldade para obter roupa de cama. Sim, na sua casa é aquele lençol bonito cujos raminhos e outras besteiras desenhadas você nunca reparou, mas aqui eu costumo usar jornal para forrar e cobrir a cama, de papelão, as embalagens de geladeiras dão excelentes camas. Mas é difícil consegui-las. Não sou o único que mora debaixo das marquises desta cidade. Até porque não há marquises para todos. Muito menos bons nacos de papelão. Jornal há bastante, mas não é o suficiente. E tendo que conseguir novas camas todos os dias... Compreende a minha dificuldade?
- Eu simplesmente não acredit...
- Nem eu , rapaz! Nem eu! Espero que você tenha registrado todos os detalhes, mas é inevitável que eu tenha que abandonar ste que considero o melhor dos Armazéns do Cais do Porto. Muita sombra, pouco sol, boa vizinhança, todo mundo de paz. Mas... Olha, eu agradeço sua atenção, ainda bem que podemos fazer chamadas para a Companhia de Água através dos telefones públicos, porque senão....
- Qual o seu nome mesmo? Tomás Coelho? E o que mais?
- Tomás Coelho da Silva Jardim, tome nota, é um belo nome, sou bem nascido e bem vivido, apesar de mal residido e mal alimentado...Inclusive, por falar nisso, não poderia você arrecadar com seus colegas aí da companhia alguns trocados, ou então você mesmo me pagaria uma vez por semana uma bela refeição, com carne de verdade e...
- O senhor é casado, senhor Tomás?
- Agora? Não, agora sou casado apenas com o acaso e com tudo o mais que desemboca em caminhos sem rumo. E, mesmo assim, note bem, rapaz, que falo bonito. Mas sou viúvo atualmente. Você está me cadastrando aí no seu computadorzinho? Vamos lá, já lhe falei, o logradouro é que...
- Sua falecida esposa chamava-se Penha?
- Vocês me localizaram! Estão pensando o quê? Sou um vagabundo inofensivo, a pessoa à quem eu mais faço mal sou eu mesmo, o que vocês estão querendo? Me levar pra algum abrigo? Me encher de creolina e catar piolhos e pentear meu cabelo todo pro lado e me barbear e me enfiarem aqueles panos de vestir doentes? Olha, vocês não vão me achar mesmo, eu vou desl...
- Um instante, senhor. Não há mais dúvida alguma.
- Ah, então é isso mesmo? Vocês do Governo não se preocupam com outra coisa que não seja a aparência? Não vêem que isto não dá em nada? Que logo voltamos e em seguida vocês nos levam... É deprimente, nem que fosse morar nesses abrigos eu toparia, sabe?

- Senhor Tomás Coelho...

- Sim, não me leve à mal mas é isso mesmo, vocês tentam enfiar a sujeira pra debaixo do tapete, mas a tapeçaria está esgarçada e velha, enquanto que a sujeira vai engolir o tapete, vocês vão ver! Seu bando de miseráveis! Ladrões!!! Fascistas!!! Eu quer...

- O senhor é meu pai, senhor Coelho.

- Ah, sou? E será que você não quer passar um fim-de-semana no bangalô do papai, filhote? - escarneceu o incrédulo morador de rua - resolveu tirar um sarro da minha cara pra eu desligar? Isso mostra o quanto esse governo é hípócrita!!! Não passam de uma corja de...

- Ricardo Coelho, nascido em Água Santa, filho de Maria da Penha do Rosário Jardim e Tomás Coelho da Silva Jardim. Nomes familiares, senhor?

- Jesus Santíssimo!!!! Isso não pode ser verdade!!!! É você, Ricardinho??

- Meu pai... Vou até aí vê-lo, buscá-lo, tirá-lo daí... Há tanta coisa para conversarmos, para acertarmos... Por que você não ligou mais? Não escreveu? Por que nos abandonou?

- Ah, Ricardinho... Eu nunca soube ser um bom pai... Me desculpe, vamos deixar tudo assim como antes de hoje, dessa maldita ligação, desse maldito vazamento... Não podemos fazer isso. Fui um pai medíocre, não quero que me veja...Ah, maldita ligação, maldito acaso!!!!

Ainda com a tiara do fone apoiada na cabeça, alcançou o braço de seu supervisor e quase lhe implorou para que fosse liberado naquele instante. Tropeçando nas palavras, explicou sobre a situação absurda e trágica de que teve conhecimento em tão poucos minutos. Seu superior não hesitou em liberá-lo, convencido que estava, menos pela história e mais pelo descontrole e ansiedade do rapaz, que voltou à linha, esquecida momentaneamente durante estes minutos com o senhor supervisor de atendimento. Vazio. Silêncio absoluto. Só o chiado da própria respiração. Ele tentou, em vão, dialogar com o nada que preenchia a sala inteira, nesse momento. Verificou o aparelho, incrédulo, suspenso no ar. "Ligação encerrada", mostrava o visor. Se desvencilhou do fone e voou pelas escadas do 11° andar. Às 14 horas do horário de verão no Rio de Janeiro. Lutava para desviar da multidão disforme nas calçadas, como que tentando impedi-lo. Armazém Nove. Sol carrasco, bandido. Papelões, jornais e sacolas de plástico com estampas de supermercados. Encharcados. Um pequeno lago ali, bem em frente. Vazamento sem solução aparente. O telefone público, do outro lado da rua, fora do gancho e pendendo no ar, preso ao fio, ainda balançava. Um ônibus furioso passa sobre a poça enorme. A água escorre pelos trapos. A marquise do Armazém Nove está agora disponível para novos moradores. Que não se incomodem com o pequeno problema do cano furado na rua. E, principalmente: que não tenham filhos.

13 comentários:

Anônimo disse...

História bonita, bem escrita e com vontade de quero mais. Não deixe de escrever mais e mais neste blog.
Parabéns!! Você é muito bom.

Beijos, Marcela.

Anônimo disse...

Adorei a história! parabéns!
bjs!

Anônimo disse...

Muito boa senhor Marco!
beijo

Anônimo disse...

senhor marco!
vc é muito bom, rapaz!
parabéns, visitarei sempre!
um beijo

Sabatinelli23 disse...

porra, me identifiquei com o tomás!
até pq eu passava direto em frente a casa dele até mês passado.
se encontrá-lo, mande um abraço por mim.

Anônimo disse...

Otimo !
continue atualizando
antes de dormir, é claro.

Anônimo disse...

posso chorar agora, parte?

su ellen. disse...

- nossa, você escreve incrivelmente bem! =D
vou linkar você nos meus livros de cabeceira tá?
escreva mais, escreva sempre! :]

beeijão =*

su ellen. disse...

- nossa, me senti lisongeada =)
obg ... beeijo =*

su ellen. disse...

- nossa, adoro esse texto! =)))
o final então é espetacular ...
já li e reli inúmeras vezes, simplesmente incrível :)

beeijo :*

Klotz disse...

Armazém 9 é aquele logo após o 8?

Um texto bastante criativo com um final interessante. Parabéns.

Anônimo disse...

Olhe, se voce está pensando que vou fazer algum comentário crítico literário...Hum... Pode ir tirando o "cavalinho da chuva", eu não entendo nada disso visse? Mas vou te dizer que me diverti muito, ri muito, li duas vezes e o melhor de tudo provocou reflexão.
Bjo grande,
Nádja

Tempero Musical disse...

(Estou imaginando um mendigo fazendo uma ligação para o sistema de esgoto)

Surreal.

Mendigos que têm cachorros ainda não perderam a vontade de viver. Será que o pai-mendigo tinha um cachorro? Será que dormia com ele na mesma cama que foi tantas vezes alagada, compartilhando suas pulgas e seus sonhos inertes?
Muitas vezes cachorros são mais bacanas que filhos. Outras vezes não. O que importa é prosseguir, somente.